Nestes últimos anos, Carlos Carvalheira tem investido na escrita de ficções de extração histórica, evocando aquele Portugal do séc. XV, quando o reino transitava do feudalismo para o capitalismo. Na esteira do romance “A Ira do Pelicano”, de 2019, e do conto “O Judeu e o Mestre”, de 2021, publicou “O Último Duque”, também nesse ano. Tais ficções encenam a aproximação da corte portuguesa à comunidade hebraica. É essa sociedade que Carvalheira recria neste ciclo de narrativas de cunho histórico-lendário, visando ilustrar a nação judia em Portugal.
“O Último Duque” revisita a aliança entre Portugal e a corte de Borgonha, uma das principais potências europeias da época e terra natal do pai de D. Afonso Henriques. Nesse contexto, relata a história de um físico judeu chamado Pero Lopo, natural da Guarda. Pero tornar-se-á o médico de Isabel de Portugal, filha de D. João I, e mãe de Carlos o Temerário, o último duque de Borgonha – donde o título da obra –, que Lopo identificará por entre os mortos, na batalha de Nancy, em 1477.
Num volume de 171 páginas, a obra compõe-se de um prólogo, cinco capítulos e uma nota intitulada “Factos e personagens”. Não é um romance histórico tradicional, apostado em reconstituir cenários, figuras e factos documentados, para explorar as lacunas que a História não preenche. O modo como o passado é invocado decorre, antes, da miscigenação da crónica, da lenda e da alegoria. Num estilo inspirado na poética da narrativa bíblica, rica em descrições simbólicas e sensoriais, a diegese é regida por narrador omnisciente, que vê as coisas de cima, parecendo pairar sobre as personagens, o tempo e os espaços.
Sustentando a figuração de um ser especial e o messianismo judaico, a voz do texto elabora uma sucessão cronológica de “frescos”, com saltos temporais, como sequência narrativa que confere ao leitor uma visão dessa Europa marcada pela Guerra dos Cem Anos (1337-1453), pela trilogia «fome, peste e guerra», pelo início do processo da expansão marítima português, sob os auspícios da “Ínclita Geração”, e pelo fim do Ducado de Borgonha, em benefício, mormente, da Coroa de França.
No tocante à representação das «terras da Guarda», a narrativa recupera topónimos do burgo e arredores, designadamente, no espaço “intramuros”, a Judiaria, o Largo de S. Vicente, o Torreão e a Porta da Erva, e nas proximidades, Tintinolho, Jarmelo, Mizarela, fragas do Mocho Real, Vale do Mondego e Vale do Zêzere. Carrega em si o imaginário local alusivo não só a lendas, em particular a da filha do Barbadão, Inês Peres, e a do Jarmelo, de onde seria originário um dos assassinos de Inês de Castro, como também à medicina popular e curas mágicas. A par de pobres jornaleiros, almocreves e segadores, é este o território onde, entre calhandras e lacraus, vivem a «bruxa da Mizarela» e um «fazedor de milagres», que tem tanto de «judeu errante» como de «messias», sendo o pai do apanhador de víboras que se há de tornar um físico reputado. Dos guardenses, dirá o narrador: «A Guarda (…) que, quando (…) possui [filhos ilustres], os esquece».
O autor estabelece assim um diálogo entre o passado e o presente, perspetivando temas bem atuais: a tensão entre o poder e o povo, o ostracismo votado àqueles que investigam e criam, a construção de uma identidade europeia moldada também pela participação de judeus, o possível paralelismo entre a peste e a Covid-19, a esperança como impulsionadora da utopia. Todavia, talvez para o fio narrativo não perder a sua lógica interna, o texto deixa de fora aquela Guarda de então, com os seus eruditos cristãos, a vida no convento de S. Francisco, a edificação da Sé, a romaria à Nossa Sra. do Mileu, a fama de Frei Pedro e os préstimos de Rui de Pina.
Dedicado «A todos os guardenses», este livro vem preencher um vazio de conhecimento sobre o fantástico e a história da Beira serrana. Nesse vazio desponta um rasgo de humanidade e, nos tempos que correm, isso é um bem não desdenhável. Aproveitemos, pois.
Pero Lopo da Guarda, o físico que declarou o óbito do Ducado da Borgonha
“Dedicado «A todos os guardenses», este livro vem preencher um vazio de conhecimento sobre o fantástico e a história da Beira serrana. Nesse vazio desponta um rasgo de humanidade e, nos tempos que correm, isso é um bem não desdenhável. Aproveitemos, pois.”