Se há metáforas que resistem ao passar dos tempos, a “mão invisível” de Adam Smith é seguramente uma delas: o mercado não necessita de regulação ou intervenção externa, pois tem a capacidade de se autorregular, como se houvesse uma “mão invisível” a orientar permanentemente a interconexão entre a produção e o consumo.
Os mercados nacionais e internacionais conheceram um incremento exponencial com a Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, e subsequente consolidação do capitalismo industrial, comercial e financeiro. A industrialização e o capitalismo estão envoltos numa ambiguidade aparentemente insuperável. Por um lado, passou a ser possível levar um maior número de produtos a um maior número de pessoas. Mas, por outro, desequilibrou-se ainda mais a distribuição da riqueza, assistindo-se a um agravamento das desigualdades sociais que já existiam no mundo pré-industrial.
Por meados do século XIX, já várias vozes se tinham erguido contra as injustiças sociais geradas pela industrialização e pelo capitalismo, denunciando, em particular, as condições de vida e de trabalho deploráveis do proletariado. Alguns espíritos, munidos de uma enorme empatia e compaixão, foram mais longe. Foi o caso dos socialistas utópicos, que propuseram modelos de organização socioeconómica alternativos. Ficaram célebres os Falanstérios de Charles Fourier, as cooperativas industriais de Robert Owen e as sociedades industriais governadas pelas forças produtivas de Saint-Simon.
Foi também o caso de Karl Marx. Ao apelo à filantropia e à escala mais local dos modelos dos socialistas utópicos, o filósofo e economista alemão contrapunha o apelo ao combate político-social e a implementação de um novo modelo socioeconómico à escala global: o comunismo. A Marx não faltaram apoiantes entusiastas que procuraram implementar modelos inspirados na sua teorização socioeconómica. Mas todas elas falharam (e continuam a falhar) com estrondo.
Esses sucessivos falhanços não invalidam, todavia, a assertividade de Marx, dos socialistas utópicos e de muitos outros nas suas críticas ao capitalismo enquanto gerador de desigualdades várias. Nem, tão-pouco, nos podemos esquecer que o atual modelo socioeconómico é responsável por níveis de destruição e de poluição ambientais sem precedentes. Com efeito, permanece a necessidade de reformar o modelo socioeconómico vigente, começando, obviamente, pela supressão das suas feições mais nefastas.
Uma leitura compreensiva de várias dinâmicas locais e regionais emergentes, de diferentes pontos do globo e não ligadas entre si, parece indicar que estamos já a assistir à configuração de novas formas de organização socioeconómica capazes de superarem esse desafio. Une-as a atenção às especificidades locais e regionais, a valorização crescente da economia social, o incentivo à participação cívica e política, o combate a diversas formas de exclusão social e a promoção de uma maior sustentabilidade a todos os níveis, com ênfase na proteção ambiental, na economia circular e nos circuitos de abastecimento de maior proximidade.
Se estes modelos emergentes vingarem, então o modelo capitalista não será, afinal, destronado por um movimento revolucionário ou revogado por decreto, mas sim humanizado por pessoas e instituições empenhadas na construção de um mundo melhor. É como se uma “mão invisível” regulasse as relações entre todos esses intervenientes locais e regionais em prol do bem comum.
É bem provável que Adam Smith ficasse feliz com esta nova aplicação da sua metáfora. Afinal, foi também ele quem, logo nos alvores da Revolução Industrial, fez questão de lembrar que «nenhuma sociedade pode florescer e ser feliz se a maioria dos seus membros for pobre e miserável».
* Ex-presidente da Federação do PS da Guarda e antigo vereador da Câmara da Guarda