Caríssimo Sebastião José: interpreto como mais um gesto da tua magnanimidade para comigo que reajas aos meus longos silêncios – há quanto tempo não te epistolava, distintíssimo Marquês? – com a grata imagem de um mármore branco saído do cinzel de Machado de Castro ou com um ornato estucado pelo destro colherim de Grossi. Julgo-te habilitado para compreender – depois de tudo o que passaste – que os momentos contemplativos geram mais estados de alma do que os proventos advindos de descer ao redondel e arrostar a liça, como tantas vezes fizeste, e nem sempre da maneira menos repreensível. Dirijo-me a ti – confesso – mais por exercício ocioso do que necessidade, pois os amigos também servem para desenfastiar. Além do mais, como te disse em tempos, não necessitei de fazer qualquer catarse à imagem que tinha de ti para validar a nossa amizade. Absolvi-te no meu íntimo apenas, depois de fazer uma análise, digamos, menos camiliana ou jesuítica da tua obra. Custa-me mais esquecer o que fizeste à Mariana de Alorna do que aos outros Távora todos, apesar da crueza indissipável desses actos. Até porque a Maria Horta não te perdoou de todo e a ordem de grandeza das amizades estabelece-se em mim sempre sem artificialidade. É alta madrugada outonal e não há mais ninguém se não nós neste teu Palácio; apercebo-me que vieste até mim pelo ranger do espaldar do cadeirão escolhido por catálogo de mobiliário sueco, que era no teu tempo um “fauteuil à la reine” com braços estofados em tapeçaria de Beauvais com cenas inspiradas nas fábulas de La Fontaine. Não notaste diferença – ou disfarçaste-a – e eu pude serenamente continuar esta carta. Na verdade, congratulo-me que não tenhamos sido contemporâneos pois por certo não nos daríamos bem, pois creio que eu desfloraria as tuas leis e inundaria a “Gazeta de Lisboa” de impropérios metafóricos e até irónicos para fugir à tua Censura, combinaria um pseudónimo com o redactor José Freire de Monterroio Mascarenhas – afinal tu também te ocultaste em Londres e em Viena sob nome iniciático – e dar-te-ia acrescidas razões para suspenderes o periódico, como suspendeste, em 1762. Não me dou bem com ditadores, sabes? Talvez porque nasci no ano em que Salazar – há quem ouse comparar-te àquilo que será, quando muito, a remota reprodução da tua sombra parda e antitética – caiu da cadeira: em 1968. Talvez seja esse um estigma benévolo que me incompatibiliza endermicamente com todo o autoritarismo. E nos dias de hoje, pululam como pragas essas criaturas: nas repartições públicas e nas escolas, nas universidades e no meio empresarial; nos círculos do poder e da governação. Mas não queria terminar esta carta em tom amargo, nem deixar que se estabeleçam comparações absurdas que podem até ofender a tua índole visionária e reformista. Vamo-nos vendo por aqui. Sei que não deixarás de te sentar defronte de mim e recordar-me o que disseste a certo embaixador: – «Um homem é tão poderoso na própria casa, que mesmo depois de morto são precisos quatro para o tirar de lá». Outra metáfora que fica entre nós!
NR: Em memória de João Mendes Rosa, que nos deixou na semana passada,
O INTERIOR republica a sua última crónica, publicada a 3 de novembro.