Julgava o velho e eterno aprendiz de almocreve das letras, ao cabo de tanto amargor e sobressalto – vencidos não obstante, no transcurso dos anos, pelo tenaz recurso a uma humildade judiciosa (decorrente da abnegação sem-medida em prol do bem comum) – de cotovelos pesadamente ficados sobre os joelhos, que o sentimento humano mais miserando seria “a inveja”. Aprendera a lidar com ela primeiro de uma maneira literária: fechou “Os Lusíadas” naquela tarde de Outono que despedia já os odoríferos resquícios dos mostos das adegas, e pôs-se a imaginar porque razão o maior génio da poesia pátria fecharia o seu “opus Magnum” com tão hediondo vocábulo: «Da sorte que Alexandro em vós se veja / Sem à dita de Aquiles ter enveja.” (Canto X). Depois, percebeu melhor – à conta de muita pancada da vida e riposte de igual jaez, pois então, que a vida também lhe foi abrindo os olhos – quando se aletradou no Latim com um padre que era capelão do hospital e descobriu que a palavra, a medonha palavra – andava amistada com uma outra, consagrada na locução do Eclesiastes: “vanitas vanitatum omnia vanitas”. E sob o jugo de ambos os sentimentos, guindou como pôde a sua vida, acautelando-se deles, interpretando o mundo e percebendo nos seres e nas coisas o baiado por vezes imperceptível dos fenómenos comportamentais decorrentes de um ou outro estado de alma, que de uma maneira larvar ia destroçando as relações e as comunidades humanas, degenerando paulatinamente num aparatoso espectáculo de alienação colectiva. Inveja e vaidade!
Tornou-se cada vez mais, um observador. Um cuidadoso e atento captador de comportamentos. A janela de sua casa, a mesa de café onde fingia ler o “Diário da Tarde”, a soleira granítica da Sé, tornaram-se nos seus mirantes privilegiados e discretos. Anotava no canhenho os actos diários de um decurso teatral em que o género humano era o protagonista, ao que parece sempre incólume à arbitrariedade dos vários papéis a que se sujeitara no decurso de mais de trinta séculos de actuação. Ora herói – semideus até algumas vezes – mas logo a seguir, vilão, mártir, vitorioso ovacionado novamente, logo padecente, bonançoso, injustiçado, ingénuo, defraudado, justo, despojado, laborioso e usurpado – todos os desempenhos lhe couberam no transcurso dos tempos, de forma sucessiva. O nosso amanuense captou em epítome necessariamente breve essa paisagem humana teatralizada: anotou traidores e manipuladores, génios e libertadores, pérfidos e néscios. Quando lhe pediram uma opinião recusou-se a emiti-la: observava a vida, mas denegava energicamente uma intervenção na mesma. Garganteava sons mas não vociferava palavras. Escrevia-as. Talvez um dia publicasse tudo: as memórias dizem menos de quem as escreve do daqueles a quem se dirigem. E depois, lá terão os historiadores de refazer os dados e recompor a estratigrafia testemunhal. Mas já quando pensava que já nada o poderia surpreender no teatro humano, o nosso amanuense descobriu um sentimento adicional que movia os senhores do mundo: não, era só a inveja e a vaidade que acicatava a regência do quotidiano e inspirava poetas épicos e plumitivos pios. À sua própria custa – como sempre – descobriu nas penumbras dos dias contingentes o fio desenhado pelo aço frio da vingança. Estava completa a trilogia em que se movem certos senhores do mundo.
E no retábulo renascentista, o alvor imaginário de Pedra-de-Ançã permitiu o trânsito do Filho do Carpinteiro. O amanuense limitou-se a parafrasear Pedro no texto apócrifo: – “Quo vadis?” E o Nazareno respondeu: – “Romam vado iterum crucifigi” (Vou a Roma para ser crucificado de novo).
* O autor escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO de 1990