No final do mês de julho, quando se completaram 52 anos sobre a primeira viagem do homem à lua, o multimilionário Jeff Bezos, dono da Amazon, foi notícia em todo o mundo por causa de uma viagem ao espaço com a duração de apenas onze minutos. O tempo de espreitar pela janela a curvatura da terra, de experimentar a sensação da vida sem gravidade e compor um sorriso vaidoso para a posteridade de uma selfie.
O voo de Bezos (e o dos seus companheiros de viagem) custou 2,54 milhões de dólares por minuto, rondando um total de 33 milhões de euros mais coisa menos coisa, uma bagatela, enfim, mesmo que alguém com o nosso salário mínimo tenha de trabalhar quatro mil anos para poder pagar um voo. É certo que o patrão da Amazon agradeceu aos trabalhadores da empresa terem tornado possível este sonho, mas convém não esquecer o que sabemos sobre as condições de trabalho de uma empresa que nem sequer permite que os funcionários possam ir à casa de banho. E já agora, o que um filme duplamente oscarizado como “Nomadland” (2020), de Chloé Zaho, nos revelou sobre a desumanização do mundo laboral da Amazon. Todavia, a excentricidade do multimilionário não mereceria notícia, muito menos uma crónica, não fosse o contexto de uma pandemia ter tornado visível à escala planetária uma gritante desigualdade económica e social. E de o homem mais rico do mundo, fundador da Blue Origin, a companhia aeronáutica por detrás desta odisseia, ter o olho atento ao negócio do turismo espacial mais do que às vistas lá do alto.
Obsceno é talvez a palavra que me ocorre, não tanto pela forma ostensivamente fálica da cápsula da Blue Origin, nem pelo gesto onanista que a pôs em órbita, mas pela distância medida em anos luz entre uma realidade e a outra, uma distância tão despudorada, tão desmedida, que obriga a confinar as excêntricas personagens, literalmente, a uma existência fora do palco terrestre. Para não dizer fora da linguagem porque deixou de haver palavras para dizer uma distância tão incomensurável que deixou de caber na ordem de uma qualquer racionalidade. Impossível não me lembrar das palavras que escutei a Lipovetszky, há uns anos, na minha Universidade sobre o culto pós-moderno da «experiência», da sensação, da fruição hedonista, como uma das marcas do individualismo pós-moderno. O exemplo dado pelo filósofo foi justamente o de um multimilionário americano que estava disposto a pagar biliões, triliões, quadriliões por uma breve viagem pelo espaço. A notícia era manchete nos jornais e televisões de então, mas hoje dou por mim a pensar se Lipovetzsky não estaria a ser premonitório e a falar da viagem de Bezos. Por todo o mundo há milhões de pessoas que perderam familiares e empregos, populações inteiras que não têm direito a vacinas nem dinheiro para pagar funerais ou matar a fome, que não têm água ou comida, economias a braços com uma crise pandémica e, contudo, há gente disposta a gastar milhões para experimentar a sensação de uma viagem de dez minutos no espaço com direito a dez minutos de glória. Mais do que um dos paradoxos terminais anunciados por Milan Kundera, talvez estejamos a viver um paradoxo inaugural, desses que vêm a bordo de um novo milénio. A arrogância de um individualismo que se tornou cada vez mais insensível ao outro. Ao sofrimento do outro.
Por estranha coincidência, viajando uma destas noites a bordo da Netflix, parei para olhar a paisagem campestre do Beaujolais e escutar um diálogo improvável. “Dialogue avec mon jardinier”, de Jean Becker (2007), a partir do romance homónimo de Henri Cueco, é um filme sobre o (re)encontro de um pintor parisiense de regresso à casa onde nascera e um jardineiro, seu antigo colega de escola. “Dupinceau” (Daniel Auteuil) e “Dujardin” (Jean-Pierre Darroussin) pertencem a mundos distantes. Mas entre a altitude da nuvem parisiense em que até aí vivera o pintor e a profundidade do húmus que alimenta a raiz do jardineiro, há lugar para a linguagem, mesmo que sob a forma do paradoxo. Porque o paradoxo é sempre uma forma de fazer descolar o pensamento, de procurar uma qualquer forma de racionalidade entre duas realidades contraditórias. Dupinceau pinta a paisagem à sua volta, justapondo pinceladas de cor, verdes, cinzas, amarelos, num impressionismo abstrato. Dujardin observa a tela sobre o cavalete, olhando em volta. A páginas tantas, o pintor quer saber a opinião do amigo. Dujardin limita-se a comentar que não vê nada daquilo que ele vê. Exceto os íris amarelos. «Quando pinto cá fora pinto menos o que vejo do que aquilo que imagino», justifica-se Dupinceau. O jardineiro lança então uma nota desconcertante que põe a nu a distância entre a nuvem da teorização estética e a profundidade do real: «É estranho sair para pintar uma coisa que não vemos». Sem o saber, Dujardin ensinará a Dupinceau a descer o olhar para o chão, lá onde florescem as cores e ganham corpo as formas, os íris, as beringelas e as courgettes que o jardineiro cuida até morrer.
A altitude foi durante muito tempo um pecado. Elevar-se acima de si próprio e dos outros, invadir o espaço de Deus ou tentar colonizá-lo, era uma arrogância que merecia castigo. Ícaro despenhou-se no mar por querer aproximar-se do Sol e Simão Mago despenhou- se de uma torre de madeira depois de ter descolado verticalmente e elevar-se no ar graças ao apoio de demónios. O resultado do empreendimento aeronáutico do arrogante Simão é o que vemos hoje na tela de Benozzo Gozzoli (séc. XV), na National Gallery de Londres: um corpo morto, estatelado no chão, um fio de sangue.
Todavia, o sonho de voar sempre fez parte da nossa frágil humanidade. No século XVIII construíram-se aeróstatos vários, passarolas, dirigíveis, balões, ainda que a altitude alcançada fosse comedida e muitos deles não tenham mais do que levitado breves segundos. No século XIX o balonismo tornou-se moda. Balunáuticos e balunáticos multiplicaram-se, sobretudo quando a fotografia fez a sua entrada em cena e fotógrafos como Nadar se esforçaram por captar as imagens da cidade vista de cima, isto é, sob a perspetiva de Deus. O balonismo era um passeio pelo quintal de Deus. Em qualquer dos casos, acreditava-se, como François Arago, que a aeronáutica deveria conduzir à democracia: nada como a altitude para nos dar a ver a nossa minúscula dimensão à escala do espaço. Crença que ecoa ainda nos livros e programas televisivos de Carl Sagan, nas séries e documentários mais recentes de David Attenborough sobre o planeta terra, filmadas com recurso a drones ou mesmo na democratização trazida pelas viagens low-cost.
Juntam-se duas coisas, duas pessoas, duas medidas que ainda não tinham sido juntas no espaço (ou no tempo) e o mundo transforma-se. Ou a nossa leitura dele. Quem o diz é Julian Barnes em “O Pecado da Altitude” (Os Níveis da Vida, Quetzal, 2013) e eu não posso estar mais de acordo. Longe vai por estes dias o comentário de William Anders, um dos astronautas-piloto que integrou a missão da Apolo 11, em 1969, e Barnes recorda, o primeiro a fotografar a terra vista da lua: «Penso que a todos impressionou o facto de termos percorrido 384.000 quilómetros para ver a Lua e de ser para a Terra que valia realmente a pena olhar» (p. 31). A altitude parece ter deixado de significar a humildade de reconhecer a nossa pequenez no universo para dar lugar à desmesura de uma ganância incapaz de descer à terra e ver o sofrimento dos outros. Incapaz de olhar a terra a partir de uma janela no espaço. De ver o azul dos oceanos ou adivinhar o chão onde florescem íris ou crescem as beringelas e courgettes que nos alimentam a mente e o corpo, cega para tudo o que não seja uma selfie que garanta um lugar a bordo da Forbes. Incapaz de perceber que a arrogância do voo pode pôr em causa a democracia neste chão que pisamos.
A arrogância da altitude
A altitude foi durante muito tempo um pecado. Elevar-se acima de si próprio e dos outros, invadir o espaço de Deus ou tentar colonizá-lo, era uma arrogância que merecia castigo.