Poucas personagens como Otelo encarnaram sentimentos tão contraditórios, fruto de paixões e conflitos de análise, de visões antagónicas decorrentes de determinismos inescrutáveis e da dualidade entre opostos alegadamente inconciliáveis: este maniqueísmo entre luz e trevas, bem e mal, personalizado no Homem acompanha-nos ao longo do séculos e explica, talvez, todas as formas de ligeireza interpretativa, quando não de intolerância havidas e por haver; todas as adversidades que o preconceito e os apriorismos nutrificam, tornando o ser humano cativo de códigos acidentais emanados de um pensamento contingente e (por vezes) estulto que tende a prevalecer sobre as próprias cinzas sempre que se julga atingido o que parece ser sempre, uma e outra vez, o estádio irreversível da maioridade civilizacional.
Mas a história da humanidade está repleta de exemplos que atestam a ambiguidade dos valores e o quão falaciosas foram as fundamentações que permitam dar azo à barbárie e à incivilidade. A escravatura foi uma delas. A servidão capitalista é uma delas. Quem são os vilões e os virtuosos de hoje em dia? Os que, condenando a escravatura histórica, abençoam a escravidão capitalista actual? O conceito, por exemplo, de “guerra santa”, tendo sido nefando, ganha hoje contornos assustadoramente contemporâneos (vale isto, evidentemente para todos os credos, desde o Cristão da medievalidade ao Muçulmano dos dias que correm). Mas diga-se o que se disser, nenhum argumentário que atente contra a dignidade do homem pode ser entendível e muito menos aceitável.
Otelo condensa em si a intensidade dramática de todos os preconceitos advindos do julgamento das relações humanas (com diferentes níveis de proximidade); sociais, culturais e étnicas. Escrita possivelmente em 1603, com o título original “Othello, the Moor of Venice”, William Shakespeare faz o enredo girar em torno da traição, da inveja e da rivalidade entre as personagens. Na sua concepção, distancia-se em vários aspectos das outras três tragédias suas, como “Hamlet” (cerca de 1599-1601), “Rei Lear” (1605-1606) e “Macbeth” (cerca de 1606-1607). Mas na peça em análise, ao contrário das outras, o poeta e dramaturgo não se ocupa tanto da escala universal que assumem as temáticas conflituantes, mas particulariza-as em sentimentos circunstanciados: nela a dimensão sobrenatural é dispensada e Otelo – o protagonista – apesar da sua inusual linhagem e de ser um general ao serviço do reino de Veneza, é um homem que extrapola do conceito aristocrático convencional devido sobretudo à sua negritude, numa altura em que o linguajar comum da sociedade desse tempo aplicava indistintamente a palavra “Mouro” para se referir a Árabes e Africanos; o seu entorno não determina repercussões das convulsões familiares internas na sociedade, nem conhece ressonâncias fora do aro estrito da acção; restringe-se aos que lhe são mais próximos, sendo apenas extensivo a um bestiário metafórico doméstico, selvagem ou fabuloso, que serve de encarna os sentimentos humanos e as premonições mais fatalistas. Trata-se de um drama concentrado, em que os sentimentos são mais primários como o ciúme e a inveja; e as misérias de carácter postas a descoberto: o oportunismo, a traição, a desonestidade e o ressentimento – mas tudo afinal presente na história da Humanidade. Dir-se-ia que Shakespeare quis intervalar o seu habitual idealismo das vivências relacionais para fazer a síntese dos sentimentos humanos mediante um retrato cru dos relacionamentos ordinários, neste caso do negro Otelo e sua esposa Desdémona, de tez branca e oriunda de famílias convencionais – às quais tudo se indulgencia (até dívidas de milhões ao Estado, acrescentaríamos). A abordagem contraditória da análise é uma toada constante: Otelo, sendo protagonista, não deixa de ser apontado pela sua idiossincrasia, referido depreciativamente mercê da sua condição, desde logo o preconceito racial e social mas também a acusação justa acerca das suas prevaricações. Por outro lado, o facto de o pai de Desdémona, Brabâncio – rico senador veneziano – exaltar antes as qualidades de Otelo e o apodar com os mais cruéis defeitos quando aquele se torna pretende da filha, concluindo mesmo que qualquer veneziano branco seria preferível ao príncipe dos negros, dá conta de outro primarismo da análise humana: a que decorre da apreciação dos outros desprovida de qualquer consciência tolerante e complacente. A actualidade desta inquietante tragédia shakespeariana faz-nos reflectir e impele-nos a não cedermos a julgamentos primários, sem esquecer, todavia, os danos colaterais das acções humanas mais desviantes.
Assim, agradeço a Otelo Saraiva de Carvalho o muito que fez por um país agrilhoado pela ditadura; a sua coragem e intrepidez; o resgate da Liberdade e ter-no-la devolvido como o mais elementar e precisos dos direitos. Lamento os seus erros de ser humano apaixonado, veemente e imperfeito – e de cujos excessos ele por certo se arrependeu. O ajuizamento da História – o único perante o qual estou disposto a curvar-me confiadamente – encarregar-se-á, tarde ou cedo, de exarar o seu veredicto.
A propósito de Otelo…
“Poucas personagens como Otelo encarnaram sentimentos tão contraditórios, fruto de paixões e conflitos de análise.”