Duir*

“É preferível chegar a um ponto em que, ao nosso lado, está um reduzido pelotão de bravos guerreiros que nada prometem. Mas dispostos a trocar de armas e connosco afugentar todos os perigos.”

Há muitas teorias sobre o crescimento do Chega. Desde politólogos a comentadores, todos têm a fórmula mágica. Eu próprio já tergiversei, dando várias explicações avulsas e quiçá contraditórias. Mas há pouco descobri a pedra filosofal: Ventura deve ter criado uma equipa específica, cuja única função é monitorizar as caixas de comentários das redes sociais e notícias online. Elaborando relatórios a partir delas. Os estrategas do Chega facilmente deram conta que os instintos básicos da vox populi – a inveja, o bota abaixo e o prazer da humilhação – têm rédea solta nesses espaços. Este acervo de “genuinidade” popular é perfeito para assentar ambições populistas. Um filão inesgotável. Por norma, a coberto da impunidade, os comentadores, anónimos ou não, na pele de virtuosos e vigilantes cidadãos, lançam anátemas a figuras e instituições públicas. As quais, segundo eles, se julgam “muito importantes”, ou “vedetas”. Mas que esses cidadãos exemplares do teclado, omniscientes, sabem ter uns podres, uma vulnerabilidade onde podem morder. Nas caixas de comentários, melhor do que em nenhum outro sítio, expressa-se uma comunidade coesa e virtuosa, à procura do seu ventríloquo, do seu porta-voz. O qual, mais cedo ou mais tarde, lhe vai fazer a vontade. Canalizando, para o sítio certo, o ressentimento social, a ausência de escrutínio efectivo e de racionalidade, a bestialidade cívica. Ventura não criou nada. Limitou-se a colocar um altifalante num clamor surdo e atribuir-lhe um destino.
Desapareceu aquele porno honesto e político dos anos 70. Em que se procurava, apesar do reductio ad fornicatio, o simulacro de uma narrativa. Por muito simplória que fosse. Escancarar a genitália chocava menos do que o abandono, puro e simples, das regras da narrativa definidas por Aristóteles na “Poética”. Com a peripécia e a continuidade espácio temporal à cabeça. Portanto, havia uma história. Um vestígio de pudor. Mas não havia praticamente depilação. Não existiam metrossexuais. Ron Jeremy e Linda Lovelace (do célebre “Garganta Funda”) estavam em alta. Um entusiasmo libertador apoderava-se das actrizes. Os nórdicos, tão contidos emocionalmente, mostravam como se faz. Godard desfazia-se em elogios ao realismo do cinema hard core. A revolução começava por onde devia sempre começar: no corpo. Uma desforra para dois mil anos de culpa e vergonha, inculcadas pelo cristianismo. Uma materialidade logo esfumada no ar do tempo.
A recente indigitação/ nomeação de Costa para presidir ao Conselho Europeu é o culminar da sua estratégia pessoal, urdida ao pormenor. À qual subordinou o destino de uma maioria absoluta e do seu próprio partido. De resto, Costa parece talhado para um cargo onde nada se decide. Limitando-se a gerir equilíbrios e construir entendimentos. Recuemos um pouco. Em 2022, Costa queria ganhar, obviamente, mas sem maioria absoluta. Do seu ponto de vista, foi um embaraço, pois ficaria a ela amarrado até ao fim. A ideia seria, com uma frágil maioria, forçar uma crise, a meio do mandato, onde não fosse difícil precipitar eleições. Ou, em último caso, sair, como Durão Barroso. Propondo então a Marcelo a indigitação de Centeno, ou mesmo Medina. Quer num caso, quer noutro, o timing seria ajustado à aproximação das nomeações para novos mandatos nos órgãos da UE. Apresentando-se o ex-PM livre de encargos. Neste sentido, a chamada de atenção de Marcelo, na tomada de posse (de que convocaria novas eleições caso Costa se demitisse), não foi por acaso. A composição do governo obedeceu pois a dois imperativos: queimar em lume brando os indesejáveis (máxime Galamba); formar um executivo maioritariamente servil, que primasse pelo imobilismo e pela incompetência. Para a coordenação política e divertimento pessoal, foi buscar dois ou três delfins. Ou seja, um Governo a prazo, para o que desse e viesse. Pedro Nuno Santos foi o único que percebeu o engodo. O episódio da malograda escolha do aeroporto, teve um único objectivo: servir de pretexto para a demissão do ex-ministro das Infraestruturas. Com uma áurea de “fazedor”, no meio de um governo abúlico. As trapalhadas do executivo foram-se acumulando. Os serviços públicos colapsaram. Já não havia condições políticas para continuar em funções. Mas faltava a justificação para Costa poder bater com a porta. E o fim do mandato no CE aproximava-se. Tic tac, tic tac. Para ele, era urgente ter as mãos livres, para que a sua candidatura não perdesse peso político. Ou seja, no rumorejar dos conciliábulos áulicos em Bruxelas, longe da vista, longe do coração. Mas graças a Deus, a Providência veio em seu auxílio. Um parágrafo infeliz num comunicado da PGR foi quanto bastou para Costa começar a fazer as malas. De caminho, forçou uma sucessão, extemporânea e muito disputada, na liderança do PS, que entronizou um político impreparado e com perfil ideológico. Garantindo assim uma vitória por poucochinho do PSD. Melhor seria impossível! E Marcelo, como sempre, fez-lhe a vontade…
É preferível chegar a um ponto em que, ao nosso lado, está um reduzido pelotão de bravos guerreiros que nada prometem. Mas dispostos a trocar de armas e connosco afugentar todos os perigos. Sobretudo o maior de todos: nós próprios. Refiro-me àqueles que nos respeitam. Que sabem ouvir-nos. Que tomam as medidas à geometria dos espaços que habitamos. Que falam se si como uma questão em aberto e nos incluem nela com um convite secreto. Que nos devolvem ao ponto de partida quando a vaidade aperta. Que estão sem se fazerem notar e nos acompanham quando o grande vazio desce sobre nós. Esses.

* No antigo calendário vegetal celta, significa “carvalho”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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